sábado, novembro 27, 2010

A propósito de...


A propósito da conjuntura Cultural, Política e Económica actual, veio-me à memória o relato, que li, sobre um acontecimento de 1915, quando Amadeo de Souza Cardoso, nosso pintor maior do Modernismo, depois de ter exposto as suas obras e lhe terem sido tecidos rasgados elogios em Paris, Londres, Berlim e Chicago, resolveu fazer uma exposição no Porto. O resultado foi um desastre; os “críticos” jornalistas, disseram os maiores horrores do autor e da sua obra e que esta “ofendia e envergonhava” o nosso Povo. Saiu então em sua defesa, na Orpheu 2 Almada Negreiros, com um texto que é um elogio tão grande, que não conheço outro de tal generosidade, dirigido a algum dos nossos Pintores. Almada dizia “de todas as nossas conquistas e descobertas apenas sobreviveu a imbecilidade e daí vinha a indiferença espartilhada, da família portuguesa a convalescer à beira mar incapaz de deslocar as mãos de cima da barriga, quando um Português genial desce da Europa condoído da Pátria entrevada, para lhe dar o parto da sua inteligência”.Amadeo era assim a primeira descoberta de Portugal na Europa do Sec.XX, no entanto, ao expor em Portugal, a imprensa classificara a sua obra de obscena e monstruosa e recomendavam os “inteligentes” o internamento do pintor, mostrando assim a ignorância dessa imprensa, e como ela gerava ódios.
Olhando os dias de hoje, passados que são 95 anos, Portugal continua convalescente, de braços cruzados sobre a barriga, onde a mediocridade sobrevive, graças à intoxicação enorme que é produzida por TVs, onde proliferam, concursos de todas as espécies, as lutas intestinais do futebol, novelas e programas de fofocas e misérias, transformando este Povo em maça amorfa, que somente vibra, ou com a vitoria do seu clube ou com a derrota do adversário que mais odeia, em qualquer vertente. Esta estratégia de alguns meios de informação, subverte totalmente a nossa sociedade, criando valores onde eles não existem e sonegando os existentes. Continuamos 95 anos depois, a admirar a aparência sem conseguirmos ver a essência. Continuamos a apreciar a mediocridade persistente e a recusar o que é inovador. Neste estado apático surgem sempre figuras nas mais variadas áreas e, assistimos a situações caricatas, que só pelo facto de não termos memória, podem prevalecer. Falamos de necessidade, mas continuamos a ir de férias para destinos exóticos, com recurso ao crédito. Falamos de divida mas continuamos a recorrer ao crédito para vivermos sem restrições. As Autarquias falam do Governo quando a maioria delas está endividada até à exaustão. O Governo fala de contenção, mas a despesa supérflua continua. Ouvimos um Presidente da República apelar ao consenso e tolerância dos políticos, como se ele o não fosse e, quando foi 1º Ministro, não conseguiu nenhum consenso e foi totalmente intolerante, até na carga brutal na Ponte sobre o Tejo para reprimir o “buzinão”.Ouvimo-lo falar da dívida, como se fosse coisa dos outros, quando foi ele, enquanto 1º Ministro, o responsável pelo aumento brutal dessa mesma dívida. Continuamos a ser um Povo de braços cruzados sobre a barriga, culturalmente inadaptado ao que é seu, que não cultiva os seus valores e absorve toda a mediocridade exterior. Continuamos a recusar o que devíamos preservar. Estamos num beco sem saída, inertes à espera que um qualquer desfibrilhador nos restaure a batida cardíaca.

Crónica de Silvestre Raposo para Radio Pax